“As pessoas não enxergam que a água é uma divindade e, como tal, merece uma governança eficiente”. João Clímaco

O colapso da Ponte Juscelino Kubitschek de Oliveira, ocorrido no dia 22 de dezembro de 2024, revelou não apenas a precariedade estrutural da obra que conectava os estados do Tocantins e Maranhão, mas também trouxe à tona a negligência histórica na gestão do Rio Tocantins. Esse episódio, que resultou na morte de 14 pessoas e no desaparecimento de outras três, não se resume a uma tragédia isolada. Ele reflete as falhas sistêmicas na política nacional da gestão de recursos hídricos, caracterizadas pela falta de diálogo democrático, pela ausência de ações preventivas eficazes e pelo descaso com o protagonismo da sociedade civil.
Conforme apurado nas investigações, o desabamento da ponte na BR-226 ocasionou a queda de dez veículos no Rio Tocantins. Entre os veículos estavam motos, carros de passeio, caminhonetes e quatro caminhões, sendo dois carregados com 76 toneladas de ácido sulfúrico, um transportando 22 mil litros de defensivos agrícolas e outro carregado com material de MDF. Além das irreparáveis perdas humanas, o Ministério Público Federal (MPF) investiga os impactos ambientais decorrentes do trágico incidente.
Esse episódio reflete um problema mais amplo: os marcos legais da gestão hídrica no Brasil têm se mostrado insuficientes diante da poderosa influência de grupos de interesse. Historicamente, decisões têm sido tomadas sob a lógica de que “os fins justificam os meios”, priorizando interesses político-econômicos imediatos. Assim, os agentes públicos optaram por preservar políticas alinhadas a esses interesses, negligenciando o enfrentamento adequado dos desafios da governança hídrica.
Dessa forma, observa-se que, ao longo do tempo, a gestão hídrica no Brasil tem se mostrado falha nos rios federais. A ausência de uma administração eficaz, isenta de interesses políticos, tem comprometido a qualidade das águas e ampliado a vulnerabilidade a desastres socioambientais. Uma gestão mais transparente e participativa na Bacia do Rio Tocantins, alinhada às diretrizes do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, poderia possibilitar a adoção de medidas preventivas mais consistentes, promovendo uma governança mais eficiente e democrática para os recursos hídricos da região.
A GESTÃO HÍDRICA NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA A BACIA DO RIO TOCANTINS
A gestão hídrica no Brasil está fundamentada em um sistema moderno e complexo, que busca equilibrar os interesses dos setores públicos e privados. Esse modelo requer a criação de instâncias de gestão, como os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs), que funcionam como espaços para discussão e mediação de conflitos. A interação entre os diversos atores envolvidos permite a definição das diretrizes para a gestão dos recursos hídricos, assegurando respaldo técnico e promovendo a pactuação política necessária para garantir a eficácia das políticas implementadas.
De acordo com a Lei 9.433/97, conhecida como a Lei das Águas, a Política Nacional de Recursos Hídricos deve ser implementada de forma integrada, descentralizada e participativa em todas as bacias/regiões hidrográficas do Brasil. A legislação determina que a gestão dos recursos hídricos seja conduzida por meio de planos nacionais periódicos, elaborados, em tese, com a colaboração ativa dos diversos setores da sociedade.
O Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) desempenha um papel estratégico nesse processo, tendo estabelecido a divisão do território brasileiro em 12 regiões hidrográficas. Entre elas, destaca-se a Região Hidrográfica Tocantins-Araguaia (RHTA), que é a maior em área de drenagem integralmente situada no território nacional. Com uma extensão de 918.822 km², o equivalente a 11% do território nacional, é a segunda maior em área total e vazão, ficando atrás apenas da Região Hidrográfica Amazônica. Além disso, a RHTA abrange partes dos estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Pará e o Distrito Federal, abrangendo 9,7 milhões de habitantes distribuídos por 409 municípios.
A região desempenha um papel crucial ao atender a múltiplos usos e interesses, como o abastecimento de água, a geração de energia, a irrigação, entre outros. Esses fatores resultaram na elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Bacia dos Rios Tocantins-Araguaia, aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos por meio da Resolução CNRH nº 101, de 14 de abril de 2009.
UMA ANÁLISE ALÉM DO CONCRETO
Uma análise histórica revela que, desde a aprovação do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio Tocantins pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, em 2009, as prioridades da sociedade civil têm sido frequentemente ignoradas. Naquela ocasião, a plenária de aprovação demonstrou resistência às propostas apresentadas pelo Fonasc.CBH, que destacavam falhas no cumprimento das diretrizes de participação social e descentralização previstas na Lei 9.433/97, pilares fundamentais da gestão hídrica.
A elaboração do plano, iniciada em 2005, deveria ter sido conduzida de forma participativa, com a realização de reuniões públicas abertas e a inclusão dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, além de diversos segmentos da sociedade das regiões abrangidas pela bacia, como representantes do governo federal, estados, municípios, usuários e sociedade civil. No entanto, as diretrizes estabelecidas pela Lei das Águas, que determinam que a gestão dos recursos hídricos no país deve ser realizada por meio de planos periódicos nacionais e estaduais, não foram adequadamente seguidas, comprometendo a eficácia do processo.
É relevante destacar que, no Maranhão, o Conselho Estadual de Recursos Hídricos estava inativo durante a elaboração do plano, o que prejudicou a representação local no processo. Ademais, diversos representantes da sociedade civil relataram a falta de participação efetiva na definição das prioridades e metas para o uso e proteção das águas da bacia, o que comprometeu a inclusão das demandas locais.
PROTESTOS E PEDIDO DE VISTAS
A insatisfação foi formalizada no plenário do CNRH, a instância máxima de gestão de recursos hídricos no país, durante a 24ª Reunião Extraordinária do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), realizada em 26 de março de 2009. O professor João Clímaco, conselheiro e representante do Fonasc.CBH, apresentou um pedido de vistas regimental referente ao Plano de Recursos Hídricos da Bacia dos Rios Tocantins e Araguaia. Ele destacou a falta de tempo suficiente para que os representantes da sociedade civil, especialmente os do Maranhão, pudessem compreender adequadamente o conteúdo e as implicações do plano antes da tomada de decisões definitivas. Além disso, expressou sua preocupação preliminar com o caráter excessivamente economicista do plano.
Nesse contexto, é essencial destacar o setor agrícola da região, que, na época do plano, ocupava uma área de 4 milhões de hectares, com 124 mil hectares irrigados, e uma projeção de expansão para 450 mil hectares no futuro. O plano também enfatizava a presença de cinco províncias minerais, com destaque para a de Carajás, que abriga os maiores depósitos de ferro do mundo. Outrossim, o documento ressaltava o crescimento econômico notável da região, que se manteve superior à média nacional desde a década de 1990, sublinhando sua importância na produção de commodities que atendiam aos mercados tanto internos quanto externos.
Diante desse cenário, o conselheiro João Clímaco exerceu seu direito garantido pelo Regimento Interno do CNRH, invocando os princípios da prevenção e da precaução, reafirmando seu compromisso com a prudência e a busca por decisões responsáveis. Sua atitude teve como objetivo assegurar que as deliberações fossem bem alicerçadas, evitando decisões precipitadas e garantindo que o processo decisório fosse conduzido com seriedade.
Naturalmente, essa postura suscitou tanto apoios quanto críticas, o que é uma reação previsível em qualquer processo democrático. No entanto, é evidente que, mesmo não sendo um especialista jurídico, João Clímaco desempenhou um papel fundamental na garantia da participação democrática, respeitando e fortalecendo o princípio do contraditório. Posteriormente, ele encaminhou um parecer substitutivo, no qual destacou diversos pontos críticos e sugeriu melhorias significativas no texto em análise, durante a plenária de aprovação do plano.
Na época, durante uma conversa com representantes da sociedade civil, o então Secretário Executivo do CNRH, Dr. Vicente Andreu Guillo, fez uma afirmação: “Vocês implodiram a ponte, agora terão que reconstruí-la”. Essa declaração foi direcionada ao posicionamento do Fonasc.CBH e do Fórum Carajás, duas entidades integrantes da sociedade civil. Contudo, a frase acabou por revelar um mal-entendido, uma vez que foi o governo, ao dificultar a participação e o diálogo nas decisões sobre os recursos hídricos, quem, na verdade, “destruiu essa ponte”.
A vice coordenadora nacional do Fonasc.CBH, Thereza Christina, não escondeu sua surpresa e perplexidade diante da afirmação de Guillo. Para ela, a fala do secretário executivo não reconhecia a legitimidade da sociedade civil. “Fomos eleitos pelos nossos pares do Brasil, sendo assim, a legalidade da atitude da representação da sociedade civil no plenário do CNRH deveria ser vista como legítima e responsável”, afirmou.
REFLEXÕES E DESAFIOS
Lamentavelmente, o Plano Tocantins-Araguaia foi aprovado em 2009 pelo Conselho Nacional, por meio da Resolução nº 101, de 14 de abril de 2009, apesar do voto contrário do conselheiro João Clímaco. É importante destacar que essa foi a primeira vez que o CNRH aprovou um plano de recursos hídricos em uma região sem comitê de bacia. Ademais, o parecer substitutivo apresentado pelo conselheiro foi rejeitado pela plenária, demonstrando um desacordo em relação às diretrizes propostas.
O Plano introduziu, de forma pioneira, diretrizes voltadas a temas estratégicos como irrigação, saneamento, qualidade das águas, o aproveitamento do potencial hidroenergético e de navegação na região. Entre as diretrizes do tema estratégico de Compatibilização de Conflitos de Uso da Água, destacava-se a orientação de que os empreendimentos planejados para os Rios Araguaia e Tocantins não deveriam alterar a dinâmica fluvial, especialmente no trecho médio, uma área sensível do ponto de vista hídrico e ambiental. Outra diretriz relevante era a priorização de empreendimentos que considerassem a preservação do Rio Tocantins, com atenção especial à Bacia do Rio do Sono, um de seus afluentes, devido à sua importância ambiental e hídrica, além de seu reduzido impacto na potência inventariada.
Para viabilizar a implementação das ações propostas pelo Plano Tocantins-Araguaia, foi constituído, em setembro de 2009, o Colegiado Gestor. Sua composição incluía representantes da ANA, do Ministério do Meio Ambiente, do CNRH, assim como os Secretários de Planejamento e de Recursos Hídricos das seis Unidades da Federação que integram a região, excluindo, lamentavelmente, a participação da sociedade civil.
Em novembro do mesmo ano, o Colegiado Gestor aprovou seu regimento interno, definiu as ações prioritárias — navegação, saneamento e irrigação — e estabeleceu o calendário de atividades para 2010. Nesse período, as atividades concentraram-se na análise de estratégias políticas e financeiras necessárias à viabilização das ações priorizadas. Contudo, em 2011, as atividades do Colegiado foram abruptamente descontinuadas, comprometendo a efetividade das iniciativas planejadas.
As discussões sobre o modelo de gestão da região, incluindo a viabilidade da criação de um comitê para a bacia, foram retomadas no âmbito do CNRH em 2018 e deveriam ter sido incorporadas no novo PNRH 2022-2040. No entanto, nada avançou, e o grupo gestor, que excluía a participação da sociedade civil, dissolveu-se, para satisfação de alguns.
Todavia, quinze anos após a aprovação do plano, é necessário reconhecer que, naquele momento, a ponte de fato se rompeu, levando consigo o arcabouço institucional que sustentava a gestão das águas do Rio Tocantins. Esse colapso, no entanto, não foi causado pela representação do Fonasc.CBH no CNRH. Apesar disso, nós, enquanto representantes da sociedade civil, seguimos firmes em nossa trajetória, construindo novas pontes. Participamos ativamente das discussões e da aprovação de outros importantes Planos de Bacias de Rios Federais, como os do Paranaíba, São Francisco, Rio Doce e Paraguai. Este último, atualmente, enfrenta intensa pressão do setor econômico, que busca explorar suas águas para geração de energia e expansão do agronegócio. Tal cenário é agravado pela postura passiva da governança atual do CNRH e da ANA, que parecem permitir a desconstrução dos avanços.
UM CHAMADO À AÇÃO
Considerando que o desabamento da ponte ocasionou consequências irreparáveis e graves, especialmente no que diz respeito aos usos múltiplos da bacia do Rio Tocantins — com ênfase nos riscos relacionados à presença de grandes volumes de agrotóxicos despejados no rio durante o colapso —, é fundamental que as organizações sociais e a população se unam em uma força-tarefa para alertar as comunidades, tanto as diretamente quanto as indiretamente afetadas por esse trágico evento. Esse esforço deve ser conduzido em conformidade com a legislação vigente, respeitando os direitos e garantindo a participação ativa da sociedade, e não de forma centralizada, resgatando assim o protagonismo de um comitê gestor e a emergência de um comitê de bacia hidrográfica.
Caso o grupo gestor tivesse sido criado conforme a Resolução nº 101 do CNRH, assim como as diretrizes para a implementação do comitê de bacia do Rio Tocantins, o cenário da governança certamente teria sido outro, longe do colapso que presenciamos, simbolizado pelo colapso da ponte. A adoção de um modelo de governança mais horizontal, com a participação ativa da sociedade, teria permitido a aplicação do princípio da precaução, essencial à gestão sustentável do rio, além de garantir a preservação de infraestruturas vitais, como a Ponte Juscelino Kubitschek e outras obras fundamentais.
O rompimento da “primeira ponte” simboliza, na realidade, a falha política na condução das diretrizes do Plano de Bacia do Rio Tocantins. Essa falha foi, em grande parte, impulsionada pelo setor governamental, especialmente pela ANA e pelo Ministério do Meio Ambiente na época. Como consequência, quem sofre os efeitos dessa gestão ineficaz é a população em geral, com ênfase nos grupos mais vulneráveis, que se veem forçados a conviver com os riscos associados à presença de poluentes químicos no leito do rio e a outros danos ambientais.
Ademais, a situação da governança da bacia do Rio Tocantins tende a se agravar na atual conjuntura, caracterizada pelo enfraquecimento do CNRH e da ANA, impulsionada por uma ideologia centralista e burocrática. Essa realidade distorce de forma significativa as possibilidades de decisões tomadas de maneira democrática e participativa, conforme estabelecido pela Lei 9.433/97, que foi desconsiderada no governo anterior e ainda não foi plenamente restaurada no governo atual.
Em resumo, é imperativo restaurar uma governança mais democrática, em conformidade com a legislação vigente, para mitigar os danos existentes e assegurar a proteção sustentável dos recursos hídricos da região.
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